quarta-feira, 8 de outubro de 2008

UM CÁLCULO NO MEIO DO CAMINHO

Um cálculo no meio do caminho

FSP 25 de fevereiro, 2003
Por Flávio Ferreira, Paulo de Camargo (free lancer)


O problema do ensino da matemática começa a ter sua equação invertida. Não são os estudantes que não aprendem, são os professores que não ensinam. A afirmação poderia soar revanchista se feita por aqueles de nós incapazes de definir rapidamente hipotenusa ou uma mera raiz quadrada. Mas não se trata de reação tardia de maus alunos, e sim da constatação dos próprios educadores.

A consciência da dificuldade de transmitir o conhecimento matemático não é nova. Talvez remonte aos tempos em que Euclides o maior matemático da Antiguidade greco-romana fundou sua escola em Alexandria, cerca de três séculos antes de Cristo. A novidade é a urgência em enfrentar a questão.

Lidar com números requer uma capacidade de apreender abstrações. O resultado desse aprendizado, porém, é bem concreto. A sociedade contemporânea cobra um mínimo de conhecimento matemático. Sem o básico, a própria cidadania fica ameaçada.

Tocar um negócio, acompanhar a evolução de uma campanha eleitoral, controlar o orçamento doméstico, verificar o rendimento de uma aplicação financeira, tudo exige algum trânsito pelo mundo dos algarismos, das proporções, da linguagem matemática.

Alexandre Schneider/Folha Imagem
A auxiliar de enfermagen Myriam da Silva Bevilaqua
Às vezes, até uma promoção profissional depende da matemática. É o caso da auxiliar de enfermagem Myriam da Silva Bevilaqua, 61, que trabalha no Hospital do Mandaqui, em São Paulo. Ela voltou a estudar matemática para concluir o supletivo de ensino médio e poder, assim, ser promovida a técnica de enfermagem.

Myriam Bevilaqua não está sozinha em sua dificuldade com os números. Ao contrário. As principais provas escolares mostram que, nesse campo, há uma pedra no meio do caminho do brasileiro (a pedra está associada ao cálculo até pela etimologia: "calculu", do latim, significa pedrinha). Em 2001, nas provas do Saeb (Sistema Nacional de Ensino Básico), os alunos da 4ª série do ensino fundamental acertaram, em média, 30% das questões de matemática. No ano passado, na primeira fase da Fuvest, os 130 mil alunos tiveram acerto médio de apenas 20%.

As dúvidas não dirimidas nas salas de aula em geral acompanham o indivíduo pelo resto da vida. A ignorância tem preço alto, estabelecido numa escala crescente de exclusão dos círculos mais privilegiados da sociedade.

Sempre se soube, até intuitivamente, que a grande maioria não entende a mais rasteira matemática. A impressão foi agora confirmada por uma pesquisa nacional, a que a Folha teve acesso, que mostrou que apenas pouco mais de um quinto dos brasileiros (21%) tem pleno domínio das habilidades matemáticas básicas. Assim mesmo, a "aprovação" desse contingente só foi possível porque a pesquisa avaliou apenas a funcionalidade das habilidades básicas em matemática. Bastava o entrevistado acertar uma regra de três ou demonstrar familiaridade com representações gráficas, como mapas e tabelas, que passava a integrar essa, por assim dizer, elite.

A pesquisa Inaf (Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional), realizada pelo Instituto Paulo Montenegro, do Ibope, em parceria com a ONG Ação Educativa, procurou adequar o conceito de alfabetismo funcional à matemática. Para tanto, entrevistou 2.000 pessoas de 15 a 64 anos, que tentaram realizar tarefas de complexidade variada. Quase quatro quintos deles (79%) revelaram apenas algum grau de alfabetismo matemático.

O trabalho subdividiu esse grupo em três níveis. Cerca de um terço (32%) conseguiu apenas desempenhar tarefas simples, como anotar um número de telefone ditado por alguém, ver as horas no relógio de ponteiros e verificar datas num calendário.

Fotos Pedro Azevedo/Folha Imagem
O vendedor de balas Francisco de Souza Moraes

A maioria (44%) é capaz de resolver problemas que envolvem operações de adição e subtração com valores em dinheiro. Nessa situação, estão pessoas como o vendedor de balas Francisco de Souza Moraes, 38, que, apesar de ter concluído a primeira série do ensino fundamental, diz não sabe ler nem escrever. Vindo do Ceará, está há seis anos em São Paulo e, dominando as quatro operações, consegue calcular o ganho na venda dos 18 produtos de sua banca.

Esses dois grupos são formados por indivíduos com conhecimento funcional. No terceiro grupo, formado por 3% dos entrevistados, ficaram os analfabetos, incapazes de, ao menos, anotar um número de telefone. Em pesquisa semelhante, realizada para avaliar a habilidade no uso da leitura e da escrita, 9% foram considerados analfabetos pelo mesmo critério.

Essa comparação permitiu que, no meio acadêmico, os resultados da pesquisa sobre conhecimento matemático não fossem considerados tão ruins. Para alguns educadores, porém, essa percepção complacente em nada contribui para tornar realidade a ambição de desenvolvimento científico-tecnológico do país. É o caso do professor Antônio José Lopes, ou Bigode, como é chamado.

Autor de livros didáticos para o ensino fundamental, Bigode procura desenvolver uma conceituação mais exigente de alfabetismo funcional em matemática. "Nossa situação é um caos estrutural", afirma Bigode, que propõe um teste ao leitor na página 14.

O problema não está restrito ao Brasil, mas aqui a situação é particularmente grave. Em comparações internacionais, como a realizada pelo Educacional Testing Service, dos Estados Unidos, o Brasil sempre desponta entre as últimas posições. Para Bigode, há consenso sobre a causa do problema: a falha na educação. "A matemática da escola não diz nada para o aluno sobre o mundo que o cerca."

A crítica vem dos tempos da matemática moderna, que, concebida nos EUA, marcou profundamente o sistema educacional brasileiro até a década de 80. "A herança da matemática moderna foi um ensino centrado no cálculo mecânico, carente de significado e construído em degraus estanques", avalia o professor Luis Imenez.

A crítica ao movimento é quase uma unanimidade no meio acadêmico, mas há quem faça ressalvas. "Não era um movimento intrinsecamente errado, mas foi abortado ainda no seu início, pois ninguém se preocupou em preparar os professores e a sociedade", diz o pesquisador Ubiratan D'Ambrosio. "Esse é um problema comum em todas as reformas: só depois pensam na formação do professor."

Na tradição brasileira, a formação do professor depende sobretudo do livro didático. Esse material de apoio tem sido renovado. Nos últimos cinco anos, surgiram diversos livros produzidos a partir de concepções mais modernas. Muitos são recomendados pelo Ministério da Educação. Mas há resistência tanto de pais como de professores educados à moda antiga.

Alguns não se conformam, por exemplo, com a pouca importância que hoje se dá às frações. Muitos implicam com a liberação do uso da calculadora em sala de aula, algo de que Bigode não abre mão. "O aluno precisa aprender a usá-la com inteligência", diz. "Qual é o sentido de ensinar, hoje, como calcular à mão a raiz quadrada de 2?", pergunta. Autores contemporâneos tendem a concordar com ele. Acham que o aluno deve perder menos tempo com contas e investir mais na resolução criativa de problemas, usando o raciocínio e aprendendo a fazer relações contextualizadas. A partir dos avanços da pedagogia, os matemáticos têm usado diferentes recursos, como jogos, histórias, informática, relações culturais, ligações com o cotidiano e modelos matemáticos associados a situações reais.


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